Relações de demanda entre bens

Rafael Bressan

Introdução

  • Na seção anterior da disciplina estudamos como mudanças no preço de um determinado (e.g., bem \(x\)) afetam a quantidade demandada deste mesmo bem.

  • Ao longo da discussão, mantivemos o preço de todos os outros bens constantes.

  • No entanto, é evidente que variações nos preços de qualquer um destes outros bens pode afetar a quantidade demandada do bem \(x\).

  • Por exemplo, se \(x\) representa a quilometragem que um indivíduo dirige, espera-se que essa quantidade decline à medida que o preço da gasolina aumente.

  • Ou que aumente à medida que as tarifas aéreas e de ônibus aumentem.

  • Vamos, agora, usar o modelo de maximização de utilidade para estudar tais relações entre um bem e os preços dos outros bens.

O caso de dois bens

Introdução

  • Por simplicidade e possibilidade de uma representação gráfica, iniciaremos nossa análise de relações de demanda entre bens com o caso de dois bens.

  • Vamos considerar como a quantidade ótima escolhida do bem \(x\) é afetada por uma variação no preço do bem \(y\), \(p_y\).

  • Suponha que o preço \(p_y\) decline, isso resulta em uma rotação para fora da restrição orçamentária, de \(I_0\) para \(I_1\).

Introdução

Figura 1: Efeito-cruzado de variação nos preços: complementares brutos. Fonte: Nicholson, Snyder (2016).

Introdução

  • Como efeito de uma queda em \(p_y\), percebemos na Figura 1 um aumento na quantidade demandada do bem \(y\) (de \(y_0\) para \(y_1\)) - \(y\) é um bem normal.

  • O efeito sobre a quantidade demandada de \(x\), no entanto, pode variar.

  • Na Figura 1, as curvas de indiferença representadas praticamente assumem um formato em L e, portanto, o efeito substituição é pequeno.

  • Portanto, uma queda em \(p_y\) não induz em uma grande variação ao longo da curva de indiferença \(U_0\) à medida que \(y\) é substituído por \(x\).

  • Como resultado, a quantidade \(x\) cai relativamente pouco como resultado do efeito substituição.

  • Por outro lado, o efeito renda reflete um maior poder de compra agora disponível para o consumidor e isso faz com que a quantidade total de \(x\) escolhida aumente.

Introdução

  • Como o efeito renda domina o efeito substituição, neste caso, temos que \(\partial x/\partial p_y < 0\), ou seja, \(x\) e \(p_y\) movem em direções opostas.

  • Como \(\partial x/\partial p_y<0\), dizemos que \(x\) e \(y\) são complementares brutos.

Introdução

Figura 2: Efeito-cruzado de variação nos preços: substitutos brutos. Fonte: Nicholson, Snyder (2016).

Introdução

  • Na Figura 2, a situação é revertida. Agora \(\partial x/\partial p_y > 0\).

  • Como as curvas de indiferença agora são relativamente planas, isso resulta em um efeito substituição grande com a queda em \(p_y\).

  • A quantidade ótima escolhida de \(x\) decresce drasticamente à medida que \(y\) é substituído por \(x\) ao longo da curva de indiferença \(U_0\).

  • O efeito renda ainda indica um aumento no poder de compra do consumidor.

  • No entanto, agora o efeito substituição domina o efeito renda e, portanto, a quantidade demandada de \(x\) decresce para \(x_1\).

  • Neste caso, \(x\) e \(p_y\) movem na mesma direção - substitutos brutos.

Tratamento formal

  • A ambiguidade no efeito de variações em \(p_y\) sobre a quantidade demandada de \(x\) pode ser ilustrada, formalmente, utilizando-se uma variação da equação de Slutsky.

  • Usando procedimentos similares aos das aulas anteriores, temos: \[\begin{aligned} x^c(p_x,p_y,U) &=& x[p_x,p_y, E(p_x,p_y,U)] \nonumber \\ \frac{\partial x^c}{\partial p_y} &=& \frac{\partial x}{\partial p_y} + \frac{\partial x}{\partial E}\frac{\partial E}{\partial p_y} \nonumber \\ \frac{\partial x}{\partial p_y} &=& \frac{\partial x^c}{\partial p_y} - y\frac{\partial x}{\partial I}. \label{eq1} \\ \frac{\partial x}{\partial p_y} &=& \left.\frac{\partial x}{\partial p_y}\right|_{U=k} - y\frac{\partial x}{\partial I}. \\ \frac{\partial x}{\partial p_y} &=& \text{efeito substituição} + \text{efeito renda}. \nonumber \end{aligned} \qquad(1)\]

Equação de Slutsky

  • Podemos, ainda, escrever a Equação 1 em termos de elasticidades: \[\begin{aligned} % \frac{\partial x}{\partial p_y} &=& \frac{\partial x^c}{\partial p_y} - y\frac{\partial x}{\partial I} \nonumber \\ % \textcolor{blue}{\frac{p_y}{x}} \frac{\partial x}{\partial p_y} &=& \textcolor{blue}{\frac{p_y}{x}}\frac{\partial x^c}{\partial p_y} - y\frac{\partial x}{\partial I} \textcolor{blue}{\frac{p_y}{x}} \textcolor{red}{\frac{I}{I}} \nonumber \\ % \textcolor{blue}{\frac{p_y}{x}} \frac{\partial x}{\partial p_y} &=& \textcolor{green}{\frac{p_y}{x^c}}\frac{\partial x^c}{\partial p_y} - y\frac{\partial x}{\partial I} \textcolor{blue}{\frac{p_y}{x}} \textcolor{red}{\frac{I}{I}} \nonumber \\ e_{x,p_y} &=& e_{x^c,p_y} - s_y e_{x,I}. \end{aligned} \qquad(2)\]

  • Note que o tamanho do efeito renda é determinado pela proporção da renda despendida com o bem \(y\), \(s_y\).

  • O impacto de uma variação em \(p_y\) sobre o poder de compra do consumidor é determinado por quão importante este bem é para este indivíduo.

Equação de Slutsky

  • Para o caso de dois bens, os termos do lado direito das Equação 1 e Equação 2 possuem sinais algébricos distintos.

  • Assumindo que as curvas de indiferença sejam convexas, o efeito substituição é positivo - para movimentos apenas ao longo da curva de indiferença, aumentos (quedas) em \(p_y\) aumentam (diminuem) a quantidade ótima de \(x\).

  • Com relação ao efeito renda, no entanto, se \(x\) é um bem normal, o efeito renda é claramente negativo.

  • Portanto, o efeito total é ambíguo, \(\partial x/\partial p_y\) pode tanto ser positivo quanto negativo.

  • Mesmo no caso de dois bens, a relação de demanda entre a demanda de \(x\) e o preço \(p_y\) é complexa.

Exercício

Suponha um consumidor cujas relações de preferência sejam descritas pela seguinte função utilidade: \[U(x,y) = x^{0,5}y^{0,5}.\] Veja qual o efeito-preço cruzado de uma variação em \(p_y\) sobre a quantidade demandada do bem \(x\), e mostre que a razão pela qual variações em \(p_y\) não impactam a quantidade ótima de \(x\) no caso Cobb-Douglas é que os efeitos renda e substituição se cancelam.

Bens substitutos e complementares

Bens substitutos e complementares

  • Para o caso de vários bens, há mais espaço para relações interessantes entre os bens.

  • Neste caso, podemos generalizar a equação de Slutsky para quaisquer bens \(x_i\) e \(x_j\) como (derive esta expressão como exercício): \[\frac{\partial x_i(p_1, \dots, p_n, I)}{\partial p_j} = \left.\frac{\partial x_i}{\partial p_j}\right|_{U=k} - x_j\frac{\partial x_i}{\partial I}. \qquad(3)\]

  • Em termos de elasticidade, temos (derive como exercício): \[e_{i,j} = e_{i,j}^c - s_j e_{i,I}. \label{eq5}\]

Bens substitutos e complementares

  • As Equação 3 e ?@eq-eq5 nos dizem que variações no preço de um bem \(j\) qualquer induz efeitos renda e substituição que podem alterar a quantidade demandada de qualquer outro bem.

  • Dois bens são ditos substitutos se um bem, como resultado de variações em condições, substituem um outro bem em uso. Exemplo: chá e café, hamburger e cachorro-quente, manteiga e margarina.

  • Dois bens são ditos complementares se “vão juntos” no consumo. Exemplo: café e leite, whisky e charuto, refrigerante e hamburger.

  • Bens “substitutos” substituem um pelo outro na função utilidade, enquanto “complementares” se complementam.

  • Existe duas maneiras distintas de fazer essas ideias intuitivas mais precisas. Uma delas foca no efeito “bruto” de variações dos preços ao incluir tanto o efeito renda quanto o efeito substituição. A outra foca apenas no efeito substituição.

Substitutos e complementares brutos (Marshallianos)

Substitutos e complementares brutos

  • Dois bens \(x_i\) e \(x_j\) são substitutos brutos se: \[\frac{\partial x_i}{\partial p_j} > 0. \qquad(4)\]

  • Dois bens \(x_i\) e \(x_j\) são complementares brutos se: \[\frac{\partial x_i}{\partial p_j} < 0. \qquad(5)\]

Assimetria das definições brutas

Exemplo Suponha que um consumidor tenha suas relações de preferência descritas pela seguinte função utilidade: \[U(x,y) = \ln x + y.\]

Determine se os bens \(x\) e \(y\) são substitutos ou complementares brutos.

Assimetria das definições brutas

  • Como a definição de complementares e substitutos brutos incorporam tanto o efeito renda quanto o substituição, essa é a definição que observamos no “mundo real”.

  • No entanto, existem algumas propriedades indesejáveis nestas definições brutas de complementares e substitutos.

  • A principal delas é que estas definições, como mostrado no exercício anterior, não são simétricas.

  • Pelas definições, é possível que \(x_1\) seja um substituto bruto para \(x_2\) e, ao mesmo tempo, \(x_2\) seja um complementar bruto para \(x_1\).

  • Portanto, a presença dos efeitos renda pode causar resultados paradoxais.

Substitutos e complementares líquidos (Hicksianos)

Substitutos e complementares líquidos

  • Os bens \(x_i\) e \(x_j\) são ditos substitutos líquidos se: \[\left.\frac{\partial x_i}{\partial p_j}\right|_{U=k} > 0. \qquad(6)\]

  • Os bens \(x_i\) e \(x_j\) são ditos complementares líquidos se: \[\left.\frac{\partial x_i}{\partial p_j}\right|_{U=k} < 0. \qquad(7)\]

Substitutos e complementares líquidos (Hicksianos)

  • Estas definições olham apenas para os termos de efeito substituição para determinar se dois bens são substitutos ou complementares.

  • Esta definição tem um apelo intuitivo (pois olha apenas para o formato das curvas de indiferença) e um apelo teórico (pois não permite ambiguidades).

  • Uma vez que determinamos que \(x_i\) e \(x_j\) são substitutos (complementares) líquidos, eles permanecem substitutos (complementares), não importa em qual direção a definição é aplicada: \[\left.\frac{\partial x_i}{\partial p_j}\right|_{U=k} = \left.\frac{\partial x_j}{\partial p_i}\right|_{U=k}.\]

  • O efeito substituição de uma mudança em \(p_i\) sobre \(x_j\) é idêntico ao efeito substituição de uma mudança em \(p_j\) sobre \(x_i\).

Substitutos e complementares líquidos (Hicksianos)

  • A diferença entre as definições Marshallianas e Hicksianas para bens substitutos e complementares pode ser percebida nas Figura 1 e Figura 2.

  • Nas figuras, os dois bens são sempre substitutos líquidos. Dada a convexidade das curvas de indiferença, uma queda em \(p_y\) sempre faz com que a quantidade demandada de \(x\) seja menor para manter o nível de utilidade constante, \(\partial x^c/\partial p_y > 0\).

  • Já pela definição Marshalliana, temos ambiguidade pois envolve, também, o efeito renda (que é sempre negativo, assumindo que os dois bens sejam normais).

  • Na Figura 1, o efeito renda negativo domina o efeito substituição positivo e, portanto, \(\partial x/\partial p_y<0\) e os bens são denominados “complementares Marshallianos”.

  • Já na Figura 2, o efeito substituição positivo domina o efeito renda negativo, \(\partial x/\partial p_y>0\) - “substitutos Marshallianos”.

  • Com \(n\) bens padrões ainda mais complexos são possíveis, no entanto, a definição Hicksiana simplifica a análise ao eliminar as ambiguidades.

Substituibilidade com vários bens

Substituibilidade com vários bens

  • Quando consideramos o caso de \(n\) bens, vários padrões de demanda podem emergir.

  • Se um determinado par de bens é substituto líquido ou complementar líquido é uma questão relacionada às preferências de um indivíduo. Portanto, podemos observar todos os tipos de relações de demanda.

  • Uma questão importante é determinar se substituibilidade ou complementariedade é mais prevalente.

  • Intuitivamente, tendemos a pensar nos bens como substitutos - um aumento de preços em um mercado específico tende a aumentar a demanda na maioria dos outros mercados.

Substituibilidade com vários bens

  • O economista britânico John Hicks chegou à conclusão que a “maioria” dos bens são substitutos.

  • Este resultado é resumido no que ficou conhecido como segunda lei da demanda de Hicks.

  • Para mostrar este resultado, tomamos a função de demanda compensada para um bem particular \(x_i^c(p_1, \dots, p_n, V)\) que, como vimos, é homogênea de grau zero nos preços. Portanto, pelo teorema de Euler, temos: \[p_1 \frac{\partial x_i^c}{\partial p_1} + p_2 \frac{\partial x_i^c}{\partial p_2} + \dots + p_n \frac{\partial x_i^c}{\partial p_n} = 0. \qquad(8)\]

Substituibilidade com vários bens

  • A Equação 8 pode ser escrita em termos de elasticidades: \[e_{i1}^c + e_{i2}^c + \dots + e_{in}^c = 0. \qquad(9)\]

  • Mas sabemos que \(e_{ii}^c \leq 0\) devido à negatividade do efeito substituição com relação ao próprio bem - primeira lei da demanda de Hicks.1

  • Portanto, deve ser o caso que: \[\sum_{j\neq i}e_{ij}^c \geq 0. \qquad(10)\]

  • Ou seja, a soma de todas as elasticidades-preço cruzadas da demanda compensada para um bem particular deve ser não-negativa.

  • Isso nos diz que a “maioria” dos bens são substitutos - a evidência empírica é, em termos gerais, compatível com este resultado teórico.

📚 Bibliografia

NICHOLSON, W.; SNYDER C. Microeconomic theory: Basic principles and extensions. 12th ed. Boston, USA: Cengage Learning, 2016.

NICHOLSON, W.; SNYDER C. Teoria microeconômica: Princípios básicos e aplicações. Cengage Learning Brasil, 2019. Disponível em: app.minhabiblioteca.com.br/books/9788522127030

VARIAN, H. R. Microeconomia: uma abordagem moderna. 9.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. Disponível em: app.minhabiblioteca.com.br/books/9788595155107